
Nos últimos tempos tenho adquirido o vício de assistir a séries que não são emitidas em Portugal pelos canais generalistas e por cabo. Talvez derivado do forte enjoo que sinto de perceber que maioritariamente as séries se concentram todas no mesmo estilo policial, sem as desmerecer, claro. Talvez por nos últimos tempos apenas The Walking Dead prender a minha atenção uma vez por semana à noite. Mas a verdade, é que se nos arriscarmos um pouquinho a pesquisar outras produções que não made in USA ou made in UK, encontramos verdadeiros exemplos de trabalhos bem feitos sem recorrer a grandes efeitos, plots complicados ou atores consagrados.
Chamo aqui a atenção para uma série televisiva completamente alheia, talvez, a 99,9% da população portuguesa e até da maioria da Europa. Produzida na República da Irlanda, feita pela RTÉ, escrita por irlandeses, desempenhada por irlandeses e claro alicerçada na própria sociedade irlandesa e mostrando, sem tabus, um dos grandes problemas que a afeta.
Love/Hate vai hoje na sua 4ª temporada nas televisões irlandesas e já teve a 1ª emitida no Reino Unido. Confesso que quando assisti pela primeira vez, tive um enorme desespero em perceber o sotaque irlandês que graça em todos os personagens, mas talvez, esse seja um dos pontos que mais admiro na produção: mostrar todas as caraterísticas da sociedade irlandesa, sem sequer esquecer o seu sotaque e evitando o facilitismo de um inglês universal. Há quem goste, há quem odeie e refira que apenas assista com legendas. Mas o problema do sotaque passa longe se comparado ao que Love/Hate nos oferece.
Do elenco, nos passam despercebidos quase todos os nomes, talvez sobressaindo Aidan Gillen (mais conhecido internacionalmente por Guerra dos Tronos), ou Robert Sheehan (estrela da série britânica Misfits, modéstia à parte, outro bom trabalho no “submundo das séries”). E sim, submundo das séries porque é isto que Love/Hate nos retrata. Um submundo que existe e está bem vincado na sociedade irlandesa e que porventura, em outros países seria totalmente posta de lado. Afinal quem gosta de mostrar os defeitos do seu país?
Nomeada e vencedora tanto a nível da produção como do elenco nos IFTA (Independent Film & Television Alliance), a série centra-se no submundo do crime, enraizado na existência de gangues relacionados ao tráfico de droga, armas e prostituição. Passada sobretudo em Dublin, Love/Hate poder ser definida em duas palavras: como nua e crua. Os personagens não possuem superpoderes, vidas felizes ou caras bonitas (exceptuando as personagens femininas ou os arranca-suspiros Robert Sheehan e Killian Scott). Jovens, pais de família, mães extremosas e gente poderosa. Um quadro feliz que poderia muito bem, juntando o ingrediente “crime”, dar uma família Soprano ou Corleone, mas que nos dá, como primeiro ingrediente, a pouca valorização da palavra “fidelidade”. Sim, como anteriormente falei, não há desfechos felizes em Love/Hate. Quem a assiste percebe que tem de estar preparado para não torcer por ninguém, pois o amor e o ódio estão presentes em cada personagem, ditando-lhes o destino. Inevitavelmente, todas elas caminham para o mesmo desfecho: a consequência de se pertencer (direta ou indiretamente) a um mundo de crime e violência.
Num país já marcado pelo fantasma ainda ativo do IRA, onde, em vários condados reina a existência de gangues que instauram o medo e desvirtuam os mais jovens para um mundo de droga e armas, Love/Hate conta não uma história, mas várias histórias que se interligam entre si. Começada com o drama do personagem Darren Treacy (Robert Sheehan) que, emigrado na Espanha ao ter fugido de uma acusação por posse de arma, retorna à Irlanda por poucos dias a fim de celebrar a liberdade do seu irmão, Robbie, a série mostra-nos também o quanto a sede de vingança pode ter consequências em catadupa, arrastando alguém com “bom coração”, para o mundo que sempre o rodeou: a criminalidade gangster camuflada pelas aparentes famílias perfeitas.
Tendo o irmão assassinado à porta da prisão, durante a primeira temporada, o telespetador assiste à tentativa de vingança do personagem, esquecendo-se de retornar à vida que tinha fora da Irlanda, caindo num mundo de violência e ajuste de contas que tem como aparente “líder”, John Boy (Aidan Gillen), um sujeito cuja riqueza se alicerça no tráfico de droga. Por outro lado, uma personagem que até nos pode parecer secundária na 1ª temporada, vai ganhando destaque e um lugar cada vez mais vincado dentro da trama. Falo de Nidge (Tom Vaughan-Lawlor), que chegando à 4ª nos aparece como o principal da trama, um personagem que ao longo de toda a série se vai transformando e que, mérito dos argumentistas e da interpretação de Tom Vaughan Lawlor (vencedor de um IFTA pelo papel) se torna, à 4ª temporada, o foco da história.
Mas mais que um personagem ou a história que possa ter, nos surpreende as trajectórias, as mentalidades, as mudanças de objetivos e de valores. Se o love está mais presente nas duas primeiras temporadas, é o hate que nos envolve nas seguintes. Pode-nos parecer, numa primeira vista, uma série puramente masculina, com grande destaque dos personagens homens em detrimento das mulheres. Com o tempo, os pólos vão se invertendo, mas o que esperar de um submundo em que são estes que “regem as leis”? Até nesta temos vários estereótipos: a mulher aparentemente perfeita, dona de casa extravagante cujos grandes objetivos da vida parecem ser um grande casamento e uma família perfeita, ignorando a forma de viver do marido, às vezes até ignorada por este (Trish, mulher de Nidge e interpretada por Aoibhinn McGinnity); ou então Debbie (Susan Loughnane) uma jovem fraca pelo vício da droga, amante de John Boy e que acaba como exemplo das jovens, belas mulheres mas que se deixam cair no fundo do poço pelo vício: desamparada e na prostituição, servindo posteriormente de mula para o tráfico de droga.
Nos pólos opostos a esta aparente fragilidade feminina em Love/Hate, temos as personagens de Siobhan (Charlie Murphy) e Lizzie (Caoilfhionn Dunne). A primeira, presente desde a 1ª temporada, aparentemente não passando de uma jovem fútil, é talvez a personagem feminina mais forte, passando por provações que vão desde traficar droga, uma violação e acabando (até ver) a ter de cuidar do marido afetado mentalmente por um violento espancamento (Killian Scott). A segunda, apresentada ao público na 3ª temporada, uma jovem de subúrbio com uma família disfuncional e que através das únicas influências masculinas que tem na vida (os dois irmãos e ligação ao IRA), se torna uma mula de armas e posteriormente uma fria assassina.
Quatro pólos femininos e recorrentes na série, que giram em volta dos personagens masculinos que detêm a atenção central da série. Não é uma crítica. Maioritariamente estas estão presentes para demonstrar o amor num mundo cheio de ódio. Desengane-se quem pensar que o termo gangue nos apresenta grupos unidos, capazes de lançar o terror quando um membro é atacado. Não. O que mais se nota em Love/Hate é a falta de ética e lealdade entre os membros. E se por um lado essa lealdade foi mostrada através de Darren Treacy, o eterno gangster com sentimentos, que defendia os amigos e que acabou traído por todos (e mais uma vez se vê a ironia do “lutar e morrer pela espada” na morte de Treacy, perseguindo durante toda a trama a vingança contra a morte do seu irmão e acabando morto pelo mesmo motivo que o levou a entrar no mundo do crime), se percebe por Nidge, que a palavra é o que menos vale para alguém que preza a própria pele acima de tudo.
Choca-nos a realidade estampada na série, mas também nos dá a perspetiva de um mundo que desconhecemos, que ignoramos e que muitas vezes está na frente dos nossos olhos. Violência gratuita através de assassinatos, espancamentos, violações, e overdoses? Não. Se abrimos um pouco os olhos, veremos que tudo decorre de problemas muito maiores, de uma sociedade corrompida pelo facilitismo e pelos valores distorcidos. Uma sociedade que nos é mostrada sem perseguições automóveis hollywoodescas, sem slow motions ou bandas sonoras épicas (mais uma vez Love/Hate se destaca por uma trilha sonora que mistura estilos e gerações, adequadas às cenas e não aos personagens).
Pode parecer polémica (com certeza o horário de transmissão na Irlanda, 21:30, seria impensável num canal aberto português), e com certeza o é (o caso das lutas de cães mostradas ou a morte indiscriminada de um gato por parte de um jovem deram mais polémica que efetivamente a dos próprios personagens), a verdade é que Love/Hate conseguiu com pouco, o que alguns não conseguiram com muito. Um roteiro que nada mais mostra do que a realidade oculta de um país e que foca o outro lado da barricada (a presença da Gardaí irlandesa é quase inexistente até à 4ª temporada), demonstrando o psicológico e os problemas de pessoas que à partida são os vilões da história.
Talvez, a não cultura de novela como acontece muito cá, permita um olhar mais detalhado e interessado para essas séries caseiras, ou não fosse Love/Hate, um sucesso nacional na Irlanda, atingindo quase um milhão de espetadores na estreia da sua 4ª temporada e mais de quinhentos mil em toda a 1ª temporada exibida no Reino Unido. De alguém de fora, pouco habituada a assistir séries sem legendas, este trabalho vindo diretamente da terra dos celtas, merece todo o trabalho e divulgação.
Não é mais que o retrato de uma realidade escondida, mas que, através de grandes interpretações e uma linha de história bem escrita, consegue cativar não só público nacional como internacional. É por isso de louvar o trabalho, o talento e principalmente a coragem de quem pegou num tema tão sensível e fez deste uma série de qualidade, capaz de nos fazer olhar melhor o que nos rodeia. Lovers gonna love, haters gonna hate.

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