Hoje é dia de desarrumar o fato.
De facto, é essa a sua função: sair do armário nestas alturas.
“Temos” entrevista de emprego e já decidi que vou de fato. Não há volta a dar, ir de camisa preta e calças de ganga está desta vez fora de questão. Definitivamente fato.
Ainda faltam algumas horas. Vou ainda a tempo de rever pela décima sétima vez o CV. Será que vale a pena (indago em pensamento)? Para uns costuma estar demais (normalmente os que pouco querem pagar), para outros falta sempre qualquer coisa (os que querem o milagre da multiplicação, ou seja, fazer que um desempenhe a tarefa de dois um mais).
Fiz a barba (ou desfiz, depende da interpretação), pois com certeza. A aparência continua a poder iludir. De fato escuro e gravata condizente, barba feita, mostra pelo menos capacidade de integração – por lá devem andar todos assim -.
Num ápice chegamos à hora de almoço, mas hoje a fome não me faz companhia, estas coisas costumam quase sempre resultar em nós no estômago. Estou até a pensar num conceito de dieta revolucionária low cost: marcar entrevista pelo menos três vezes por semana, de preferência depois de almoço.
Como enfim qualquer coisinha. Café evidentemente. Ponho o CV na pasta, algumas folhas soltas na secção de portfolio (sobretudo ideias, o resto vai na pen, o que sempre facilita) e arrumo o portátil de baterias carregadas (não vá o processo evidenciar a necessidade de o sacar). Vou de carro, estou há muito divorciado do Metro, não gosto de me sentir abaixo do chão.
Chego antes da hora (como convém) e preparo-me para, no mínimo, quarenta minutos de espera: “sabe, são muitos candidatos … e isto acaba sempre por atrasar” – diz a secretária com ar complacente.
Cinquenta minutos depois (desta vez só falhei por dez) lá entro para encarar o “doutor”. Seco “boa tarde”, seguido de “então fale-me lá um pouco de si caro …”. E falo, mas só um bocadinho, porque não gosto que fiquem a saber de mim tanto (ou quase) como eu próprio. Seguem-se uns segundos de silêncio, um olhar transviado pelo CV (reconheço-o, é o meu, tinha também vindo por email). Avança o “doutor” agora com um ar convicto “sabe, a nossa empresa procura…”. E pronto, começa o inevitável desfile argumentativo tendencialmente a fugir para o auto-elogio: “fazemos isto, somos aquilo e aqueloutro… acha que pode responder a este desafio?”… Quem? Eu? (questiono em pensamento). Sinceramente não percebi muito bem a que desafio se estava a referir concretamente mas respondo sem hesitar: “Sim! Claro que sim!” (estará ele à espera que alguém responda que não?). Preparo-me agora para a velha pergunta da praxe: “Então para esta função… qual seria a sua baliza de valores?”. Pelo menos introduziu a inovadora referência à terminologia desportiva (eu que até fui guarda-redes, sinto-me um pouco mais à vontade para responder). Lá remato um número, mas suavizo-o com sorridente “negociável”. Fico sempre a achar que foi demasiado baixo, mas tenho quase a certeza o “doutor” o interpretou como uma verdadeira excentricidade.
Posto isto é tempo de despedida e cumprimentos, “em breve contactamos… mesmo que o meu caro não seja o escolhido terá uma resposta” (pois…, ironizo em pensamento).
Saio com um “obrigado” que deve ter soado a expressão de alívio. Entretanto na sala de espera já está mais um candidato pronto a seguir … de fato escuro, gravata a condizer e barba feita.
Vou lanchar que hoje o almoço não foi grande coisa.
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